As principais cidades de todo o planeta estão passando por intensas e profundas modificações em suas estruturas e modo de funcionamento. Não sem razão, neste século, tem sido atribuído às cidades – mais do que aos estados-nação – o papel de liderar os processos de transformação social. E estes dizem respeito, especialmente, ao restabelecimento da prioridade das pessoas sobre os automóveis.
Este é um processo que já vinha em andamento, mas que se acelerou sob os impactos da pandemia provocada pela Covid 19. A verdade é que, no planeta todo, há uma clara disputa pelo espaço urbano, entre pedestres e ciclistas versus automóveis.
O mais novo round dessa disputa deu-se no início deste ano, em Paris, capital da França. Ali, um referendo aprovou a elevação do custo do estacionamento dos SUV – sport utility vehicles (veículos utilitários desportivos), de modo a desestimular a sua circulação na cidade.
Com efeito, esta categoria, como o próprio nome indica, não é veículo para as cidades. Mas, paradoxalmente, é o que está mais em voga atualmente, entre os consumidores de maior renda, na contramão da melhoria do transporte público e da chamada mobilidade ativa.
Em Salvador, como só muito recentemente passamos a contar com transporte de massa e com uma política para as bicicletas, aqui ainda se continua a construir vias, inclusive elevadas, para o automóvel, o que já não se faz mais em cidades como Paris, Nova Iorque, Londres, Amsterdã, Zurique ou Berlim; assim como em Bogotá, Santiago ou Buenos Aires. Por aí afora, já está consolidada a política de prioridade absoluta às pessoas.
O referendo de Paris triplicou as tarifas de estacionamento para carros de 1,6t ou mais, estabelecendo um valor de €$18 (R$ 100) por hora, para, assim, desencorajar o uso de carros "volumosos e poluentes", segundo a prefeitura. A nova tarifa também se aplica a carros elétricos de 2 toneladas ou mais. Em bairros mais afastados do centro, a tarifa é de €$12 (R$67).
Aqui, duas horas em estacionamento rotativo, em espaço público, para qualquer veículo (R$3,00), é inferior à tarifa do ônibus (R$5,20). E admite-se – absurdo – estacionamento “rotativo” por 6 e até 12 horas! Enquanto isto, a primeira hora na garagem de qualquer edifício comercial não custa menos do que R$8,00. Faria todo sentido, como um passo à frente, alinhar imediatamente o custo da “zona azul” com a tarifa do ônibus e onerar tributariamente os lotes vazios utilizados como estacionamentos.
Curioso é que, entre nós, as próprias vagas de estacionamento nas garagens dos edifícios não correspondem ao tamanho desses carrões. Apenas 30% das vagas têm, obrigatoriamente, 2,50m de largura e 5,00m de comprimento; as demais ficam com 2,30m x 4,50m. Assim, a lei de ordenamento do uso e ocupação do solo arbitra, sabe-se lá por que critério, o número de moradores que podem ter SUV...
Embora já esteja incluído, na agenda da cidade, o cuidado e a atenção para com os pedestres, ele compete e concorre com visões diversas e que estão muito defasadas em relação a uma política de prioridade ao cidadão vis-à-vis o automóvel.
Somente ao longo dos últimos dez anos, Salvador começou a passar por notável transformação urbana. Trechos de ruas com piso compartilhado – sinalizando prioridade ao pedestre – foram implantados ao abrigo do Projeto Orla, em vários pontos do litoral soteropolitano. No interior de alguns bairros, têm sido criadas áreas de traffic calming, com velocidade limitada a 30km/h. O programa Salvador
Vai de Bike estimulou a implantação de ciclovias, primeiro como objeto de lazer, depois como veículo para o trabalho. Fato é que a cidade até já conta hoje com um plano cicloviário!
Mas estamos ainda muito longe de termos uma política predominantemente favorável ao pedestre e às bicicletas.
Waldeck Ornélas - especialista em planejamento urbano-regional. Autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.
Foto: Divulgação / Créditos: Jose Cordeiro
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