O cais do Valongo foi o primeiro trecho do Porto Organizado de Santos, inaugurado em 1892.
Ele foi um marco histórico em múltiplos sentidos, construído numa área em que desde 1542, ao que consta, já existia um porto, ali instalado por iniciativa do fidalgo Braz Cubas. O adensamento urbano motivado pela pujança do porto, e a evolução do transporte marítimo tornou aquela área inadequada para operações portuárias, tendo sido desativada em 1988.
A partir daí teve início um processo de deterioração que também teve reflexos similares no ambiente urbano, coincidindo com o adensamento de bairros da orla, que passaram a ser habitados por população de melhor poder aquisitivo, e a natural migração de atividades comerciais para aquela região, criando novos polos atrativos.
Comer cachorro-quente ou misto quente nas Lojas Americanas; comprar broas quentinhas na Padaria Cirillo; comprar LPs e compactos na Casa do Disco, ou ficar “babando”, olhando a vitrine cheia de aparelhos de som da loja José Wenceslau Ventura deixou de ser um programa familiar.
Assim, o Centro Histórico foi perdendo interesse, embora continuasse a guardar histórias e surpresas.
O trecho entre os Armazéns 1 e 8 virou um hiato entre o cais do Saboó e o do Paquetá, embora algumas operações ainda ocorressem, geralmente de antigos navios, com seus obsoletos paus-de-carga, que começavam a operar embarque de sacos de açúcar, sendo puxados conforme os cais de maior profundidade eram desocupados. Era um processo demorado, totalmente diferente do que ocorre na atualidade.
A Prefeitura de Santos, sobretudo a partir da década de 1990, passou a atuar pela recuperação do patrimônio histórico-cultural do Centro. O Governo do Estado de São Paulo, diretamente ou por meio de verbas oriundas do Departamento de Apoio ao Desenvolvimento das Estâncias (DADE), também passou a participar desse processo de revitalização.
Em 2003, a Prefeitura de Santos criou o Programa de Revitalização e Desenvolvimento da Região Central Histórica de Santos, denominado Alegra Centro, abrangendo os bairros Valongo, Centro, Paquetá, Porto Valongo, Porto Paquetá, Vila Nova e Vila Mathias. O Alegra Centro, entre outros objetivos, criou incentivos fiscais para investidores privados interessados em recuperar ou conservar os imóveis instalados na área de abrangência.
Antes mesmo da década de 2000, a Prefeitura de Santos já havia definido a área do Cais do Valongo como destinada à revitalização e integração urbana, por sua importância histórica. O Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto de Santos (PDZ) de 2006 seguira o mesmo caminho. Tal condição foi confirmada nas leis municipais e PDZ posteriores.
Armazéns da região foram tombados, considerados patrimônio arquitetônico, mas sem definição de uma efetiva ocupação, o que é fundamental para sua preservação. Assim, tristemente passaram a também “tombar” fisicamente.
Para quem não sabe, até 1971 havia linhas de bondes elétricos que circulavam por vias internas do porto, dividindo espaços com trens e caminhões. O que era, de certa forma, bucólico, romântico, com o tempo passou a ser um sério problema: o conflito rodoferroviário.
A Lei 8.630/1993 favoreceu à modernização das operações portuárias, aumentando a demanda por transporte rodoferroviário. A construção das avenidas perimetrais permitiu o adensamento das áreas de terminais.
Na segunda metade da década de 2000, a então CODESP, face ao aumento das composições ferroviárias e do afluxo de caminhões entre o Saboó e o Paquetá, que geravam – e ainda geram, aliás – um contraproducente conflito rodoferroviário, passou a considerar sua eliminação por meio de uma passagem rodoviária em desnível, subterrânea que, bem ao gosto popular, recebeu o apelido de “Mergulhão”.
A proposta original teria cerca de 300 m e serviria apenas para eliminar o conflito entre os dois modos de transporte, na região do Valongo.
A Prefeitura de Santos vislumbrou a possibilidade de aproveitar dessa obra para viabilizar a reurbanização e integração urbana do trecho dos Armazéns 1 a 8.
As tratativas entre a Prefeitura e a CODESP foram beneficiadas pela criação, em 2005, da Secretaria Municipal de Assuntos Portuários e Marítimos (SEPORT), primeira do gênero no Brasil, cujo objetivo foi de se ocupar da relação porto-cidade. Seu primeiro titular, ocupou a Presidência do Conselho de Autoridade Portuária de Santos (CAP) por dois mandatos, o que facilitou os contatos com a também recém-criada Secretaria Especial de Portos da Presidência da República (SEP/PR).
Essa relação próxima resultou na celebração, em 2008, de um convênio entre a Prefeitura e a CODESP, com a interveniência da SEP/PR, e a consolidação do Programa Porto Valongo Santos de revitalização e integração urbana daquela área.
O “Mergulhão” foi estendido para cerca de 1.300 m, prevendo uma grande esplanada, que interligaria a cidade ao porto, permitindo visualização direta do Canal do Estuário e vários terminais portuários. Nessa área, estavam previstos vários equipamentos urbanos, concebidos com base em “benchmarking” e diretrizes internacionais. Também previa a transferência do Terminal de Cruzeiros Marítimos e a criação de hotéis associados, como âncoras do empreendimento.
A proposta era tão inovadora, em termos nacionais, que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários sequer dispunha de modelos adequados para elaborar um Estudo de Viabilidade Econômica específico.
A proposta de uma esplanada foi prejudicada pela inviabilidade de também incluir as linhas férreas no “Mergulhão”, cujo impacto na superfície prejudicaria o acesso inclusive a terminais portuários. Desta forma, a ligação entre as áreas urbana e portuária revitalizada precisaria ser feita por meio de passarelas.
As tratativas seguiram até 2014, com estudos contratados internacionalmente, várias reuniões de trabalho do Grupo Técnico Participativo (GTP) criado pelo convênio. Porém, por questões técnicas e econômicas, o processo foi descontinuado.
Outras propostas passaram a ser estudadas pela iniciativa privada, inclusive um estudo feito pela empresa Rumo Logística, controladora da Portofer, responsável pelas vias férreas do Porto de Santos. Um TAC chegou a ser firmado entre o MPE e a CODESP, sem participação da Prefeitura, o qual precisou ser repactuado posteriormente, pela impraticabilidade dos prazos inicialmente acordados.
Então, em 2015, houve o grave incêndio em terminal de granéis líquidos da Alemoa. O acesso rodoviário à margem direita do Porto de Santos (porção insular do Município) ficou comprometido por mais de nove dias!
Esse sinistro demonstrou, além de fragilidades no combate a esse tipo de evento no país, que o Porto de Santos não poderia mais prescindir de um novo acesso rodoviário à margem direita, além continuar a ter que resolver o conflito rodoferroviário existente na região do Valongo.
Os estudos realizados pela CODESP concluíram que era possível eliminá-lo por meio de viaduto(s) a ser(em) construído(s), descartando de vez a solução “Mergulhão”. A empresa passou, então, a elaborar projeto conceitual, que chegou a ser considerado no “pacote” viário da entrada da cidade, em conjunto com obras a serem realizadas pela Prefeitura e pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio da Ecovias, concessionária do Sistema Anchieta-Imigrantes. No entanto, enquanto as obras municipais e estaduais fluíram e foram concluídas, o novo acesso precisou aguardar até ser incluído como compromisso de investimento da Ferrovia Interna do Porto de Santos (FIPS). Atualmente, ele aguarda o equacionamento de interferências com áreas fora do Porto Organizado.
A ideia de transferir o Terminal de Cruzeiros Marítimos permaneceu, com a gestão anterior da Autoridade Portuária de Santos, que adotava a sigla SPA, mantendo a intenção de ocupar área na região do Valongo, e buscando equalizar o contrato de concessão vigente com a viabilização de recursos adicionais necessários.
Uma “luz no fim do túnel” - embora ao ar livre - surgiu em 2022, com a Autoridade Portuária de Santos - agora adotando a sigla APS - acenando com a possibilidade efetiva de revitalização da área entre os Armazéns 4 e 6.
Uma parceria entre a APS, a PMS e terminais portuários viabilizou os projetos e recursos necessários para concretizar o Parque Valongo, o que pode ser considerado um verdadeiro marco na história da relação porto-cidade!
Ele será um espaço de lazer, que incluirá um “playground”, área de convivência e de atividades esportivas e culturais. Também prevê um terminal hidroviário, potencializando o turismo histórico e náutico. A previsão é que ele seja concluído ainda no primeiro semestre de 2024.
Também estão em andamento obras de restauro dos Armazéns 1, 2 e 3, e da Casa de Pedra, para também comporem o complexo do Parque Valongo, enquanto as áreas dos Armazéns 7 a 11 serão utilizados à implantação de um pátio ferroviário que atenderá terminal de granéis com modo de transporte de melhor eficiência energética.
Essa composição representou um verdadeiro “ganha-ganha” para todos os envolvidos, também contribuindo para dotar a cidade e o porto de um espaço de integração e interação, que seguramente passará a compor o cotidiano do santista e se tornar um destacado equipamento turístico.
Com o Terminal de Cruzeiros Marítimos, os pontos turístico-culturais municipais do Centro, Valongo e Paquetá, e com uma rede de gastronomia e serviços que tende a ser ampliada e aprimorada, o Parque Valongo tem potencial para se tornar um polo atrativo de referência regional, nacional e internacional.
Além disso, ele tende a fomentar o repovoamento do Centro Histórico, potencializando ainda mais eventos e trazendo nova efervescência urbana e segurança a moradores, trabalhadores e transeuntes.
Não haverá mais o cachorro-quente, misto quente ou broa da Cirillo de outrora?
Pode ser... Mas é bem possível que tudo isso retorne com o mesmo sabor da infância, somado à gastronomia brasileira, portuguesa, italiana, japonesa, chinesa e, porque não, local, com uma bela meca santista. Mas se for só para beliscar, que tal degustar um pastel de queijo com caldo de cana, seguido de um café na Bolsa, ou nas várias cafeterias tradicionais do Centro?
Tudo isso poderá ser feito, aproveitando para visitar as igrejas centenárias; recordando e celebrando a memória e os feitos de Pelé, em seu museu; assistindo apresentações no Teatro Coliseu, ou no Guarany; passeando de bondinho; subindo o Monte Serrat, via funicular...
Santos tem muita coisa a descobrir e redescobrir, além de conciliar plenamente seu passado, presente e futuro. E o Parque Valongo é um exemplo do que de bom pode resultar da sinergia e dinâmica entre atores públicos e privados, refletindo positivamente no resgate e consolidação da identidade portuária do cidadão santista, no desenvolvimento e diversificação econômica, e na qualidade de vida da região.
Santos, cidade e porto, e a Região Metropolitana da Baixada Santista merecem!
Adilson Luiz Gonçalves - Escritor, Engenheiro, Pesquisador Universitário e membro da Academia Santista de Letras.
O conteúdo dos artigos é de responsabilidade dos seus autores. Não representa exatamente a opinião do Jornal Portuário.
Acompanhe os últimos artigos escritos pelo colunista:
INFORMATIVO
Comentários
Nossa política de comentários
Este espaço visa ampliar o debate sobre os assuntos abordados nas notícias divulgadas, de forma democrática e respeitosamente. Não são aceitos comentários anônimos nem que firam leis e princípios éticos e morais ou que promovam atividades ilícitas ou criminosas. Assim, comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, que usam palavras de baixo calão, incitam a violência, exprimam discurso de ódio ou contenham links são sumariamente desconsiderados.
Deixe seu comentário: